A palavra algema vem do árabe al-djamia, que significa "a pulseira". O dicionário jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas anota: "Algema... pulseira de ferro empregada para manietar alguém a fim de dificultar sua fuga quando em transporte fora do lugar de confinamento...".
Na mídia de forma geral, e na televisiva em particular, tornou-se lugar comum a apresentação de pessoas presas provisoriamente algemadas, ferindo de morte os direitos básicos da pessoa humana.
O mesmo ocorre dentro dos Fóruns Criminais onde se vê um único policial militar conduzindo, por vezes, três ou mais pessoas encarceradas algemadas umas às outras de forma que mal podem se locomover.
Não há dúvidas que a utilização deste aparato, em certas circunstâncias, é necessário, contudo não o pode ser feito de forma indiscriminada e sem qualquer critério.
A correta utilização das algemas é um tema pouco debatido pelos operadores de direito, a despeito de seu uso freqüente quando da prisão de alguma pessoa, ou quando da condução e apresentação de algum acusado preso provisoriamente.
Os poucos doutrinadores que se pronunciaram sobre o tema aduzem que a dificuldade enfrentada reside no disposto na Lei de Execução Penal em seu artigo 199, que estabelece: "o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal", decreto este que até a presente data não foi editado.
Entretanto, tal posicionamento deve ser visto com reservas, eis que é certo não haver lacunas no Direito, pois o ordenamento jurídico, considerado como um todo, é perfeito e íntegro. O que eventualmente podem existir são lacunas em algumas normas, lacunas estas que devem ser preenchidas pelos recursos supletivos para o conhecimento do Direito.
É que o direito deve ser observado sob o prisma de uma unidade, não podendo ser separado de forma absoluta, sendo desmembrado tão somente para fins acadêmicos ou de especialização.
Desta maneira, ainda que à míngua de uma legislação federal que regulamente o assunto, podemos utilizar, subsidiariamente, a regulamentação constante no Código de Processo Penal Militar que em seu artigo 234 prevê: "O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e duas testemunhas". E disciplina o § 1º do referido artigo: "O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o artigo 242".
No referido artigo 242 encontra-se elencado um rol de presos em que é defesa a utilização de algemas. São eles: os ministros de estado, governadores ou interventores de Estados ou Territórios, prefeito do distrito Federal, chefes de polícia, membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados, cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis, magistrados, oficiais das Forças Armadas, das Polícias e dos Copos de Bombeiros, Militares, inclusive da reserva, oficiais da Marinha Mercante Nacional, os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional, ministros do Tribunal de Contas e ministros de confissão religiosa.
Podemos, também, usar como supedâneo quando à utilização de algemas a Lei nº 9.537/97 que dispõe em seu artigo 10, inciso III sobre a segurança do tráfego em águas territoriais brasileiras que dispõe: "O Comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas da embarcação e da carga transportada,pode ordenar a detenção de pessoa em camarote ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, da embarcação ou da carga".
No Estado de São Paulo o uso de algemas está disciplinado pela Resolução da Secretaria de Segurança Pública - Res. SSP-41, publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo aos 02 de maio de 1983, e pelo Decreto nº 19.903 de 30 de outubro de 1950 que dispõe estar autorizado o emprego do artefato quando forem conduzidos à presença da autoridade presos que pelo seu estado externo de exaltação torne indispensável o emprego da força (artigo 2º), ou ainda no transporte de recolhidos que sejam de periculosidade conhecida ou tenham tentado ou oferecido resistência quando de sua detenção (artigo 3º).
No Estado do Rio de Janeiro a questão está regulamentada pela Portaria nº 288/76, segundo a qual o emprego de algemas deve ser evitado e é proibida sua utilização nas pessoas contempladas com prisão especial pelo Código de Processo Penal Militar.
Está em trâmite no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado nº 185/2004 que pretende disciplinar o emprego de algemas, estando previsto em seu artigo 2º as hipóteses de uso que são:
I - durante o deslocamento do preso, quando oferecer resistência ou houver fundado receio de tentativa de fuga;
II - quando o preso em flagrante delito oferecer resistência ou tentar fugir;
III - durante audiência perante autoridade judiciária ou administrativa, se houver fundado receio, com base em elementos concretos demonstrativos da periculosidade do preso, de que possa perturbar a ordem dos trabalhos, tentar fugir ou ameaçar a segurança e a integridade física dos presentes;
IV - em circunstâncias excepcionais, quando julgado indispensável pela autoridade competente;
V - quando não houver outros meios idôneos para atingir o fim a que se destinam.
Pelo exposto vemos que o emprego de algemas deve ser evitado, só podendo ser levado a efeito em casos singulares, quando houver inquestionável necessidade, não podendo a necessidade ser deduzida a partir da gravidade dos crimes nem da presunção de periculosidade do réu.
Ademais dispõe o artigo 284 do Código de Processo Penal que não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso; e, em complemento, o artigo 292 diz que se houver resistência à prisão poderão ser usados os meios necessários para defesa ou vencer a resistência.
Confira-se a decisão do Superior Tribunal de Justiça:
"Uso de algemas. Avaliação da necessidade - A imposição do uso de algemas ao réu, por constituir afetação aos princípios de respeito à integridade física e moral do cidadão, deve ser aferida de modo cauteloso e diante de elementos concretos que demonstrem a periculosidade do acusado. Recurso provido". (RHC nº 5.663-SP, 6ª Turma, j. 19.87.1996, rel. Min. William Patterson, v.u., DJU 23.9.1996, pág. 35.157).
Os princípios da dignidade da pessoa humana e da prevalência dos direitos humanos (artigos 1º, inciso III e 4º, inciso II) são fundamentos da Carta Magna, sendo obrigatória sua observância pelos agentes públicos.
Ressalte-se que o uso de algema de forma indiscriminada fere o artigo 5º da Constituição Federal em seus incisos III, pelo qual ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante; X, que protege o direito à intimidade, à imagem e à honra; e XLIX, pois desrespeita a integridade física e moral assegurada aos presos.
O Código Penal em seu artigo 38 ao tratar das penas é, também, enfático, ao dispor que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral.
Além da legislação nacional, a utilização arbitrária de algemas fere importantes tratados assinados pelo Brasil como a declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, o Pacto de San José da Costa Rica, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, entre outros, por proibirem o tratamento indigno do preso, seu constrangimento ou antecipação de pena.
Em havendo exorbitância na utilização da pulseira de ferro restará caracterizado o crime de abuso de autoridade quando submeter pessoa sob guarda ou custódia da autoridade a vexame ou constrangimento não autorizado em lei (artigo 4º, letra "b" da Lei nº 4.898/65) e atentado contra a incolumidade física do indivíduo (artigo 3º, letra "i" da referida Lei).
Devendo, ainda, ser destacado que a Constituição Federal acolheu a responsabilidade objetiva do Estado no artigo 37, parágrafo 6º. Desta forma se o agente público, no exercício de suas funções, praticou ato ilícito, causando dano a alguém, é direito deste pleitear a justa indenização ao Estado.
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